1.A Lei n.º 25/11, de 14 de Julho (Contra a Violência Doméstica), vigora há mais de sete anos e apesar da sua longevidade, a sua aplicação prática, no geral, ainda é bastante deficiente, sobretudo, no que diz respeito ao regime de prevenção, apoio e protecção das vítimas, para além de apresentar incongruências em relação ao seu âmbito e não tipificação como crime a conduta “violência doméstica”.

2. Em relação ao âmbito, artigo 2.º, a lei designa-se “violência doméstica”, mas é extensiva à
situações que literalmente nada tem que ver com relações ou conflitos “domésticos e
familiares”. É o caso dos factos que ocorrem em :

a) nos infantários;
b) nos asilos para idosos;
c) nos hospitais;
d) nas escolas;
e) nos internatos femininos ou masculinos;
f) nos espaços equiparados de relevante interesse comunitário ou social.

3. As condutas que ocorrem fora do contexto “doméstico” e “familiar” se forem típicas, encontram protecção no Código Penal. Ou seja, ainda que legislador da Lei n.º 25/11, não previsse os “asilos para idosos”, “escolas”, os factos praticados nestes lugares, por exemplo, ofensa corporal contra um “idoso” ou “aluno” são sancionados nos termos do Código Penal.

4. A Convenção de Istambul sobre a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, define na al. b) do art.º 3.º «Violência doméstica» “abrange todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem na família ou na unidade doméstica, ou entre cônjuges ou ex-cônjuges, ou entre companheiros ou ex-companheiros, quer o agressor coabite ou tenha coabitado, ou não, com a vítima”.

5.No Brasil, a Lei de Prevenção à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, também conhecida como “Lei Maria da Penha” em relação ao definição e âmbito da violência doméstica, o artigo 5.º consagra o seguinte: “Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. O seu âmbito também é a unidade doméstica e a família.

6. Não se percebe, deste modo, o legislador da Lei 25/11, quando enquadra no seu âmbito factos que ocorrem fora do contexto “doméstico” e/ou “familiar”, como se tivessem todos as mesmas especificidades e particularidades.

7. Um outro problema, que considero mais grave, que a Lei n.º 25/11 apresenta, tem que ver com a tipificação ou não do crime de violência doméstica. O artigo 3.º define e classifica os tipos de violência doméstica. “Para efeitos da presente, entende-se por violência doméstica, toda a acção ou omissão que cause lesão ou deformação física e dano psicológico temporário ou permanente que atente contra a pessoa humana (…)” e classifica a violência doméstica em: violência sexual, patrimonial, psicológica, verbal, física e familiar.

8. As definições como já tivemos ocasião de dizer em outras abordagens não são normas penais incriminadoras. O artigo 3.º é uma norma penal integrante ou de segundo grau na vertente declarativa/explicativa, pois no geral disciplina aplicação e os limites das normas incriminadoras in (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, I, 2001: 229 ss).

Deste modo, a definição de violência doméstica e sua classificação não é por si só infracção penal nem punível de forma autónoma. (em sentido contrario e sem razão, Acórdão do Tribunal Constitucional de Angola, n.º 450/2017, de 08 de Agosto).

9. O artigo 6.º(Princípio da responsabilidade criminal), reza que “quem praticar qualquer acto que configure violência doméstica, previsto no artigo 3.º, é punido nos termos das disposições da presente lei e da legislação penal em geral.” Ainda assim, entendemos que o legislador mesmo no artigo 6.º não tipificou o crime de violência doméstica. As definições do artigo 3.º, seriam elementos constitutivos do crime de violência doméstica , se o legislador de
modo claro tipificasse tal crime. O artigo 6.º consagra apenas uma regra geral de subsidiariedade e nada mais do que isto.

10. A técnica legislativa utilizada não é muito recomendável, sobretudo quando o legislador não tipifica os crimes de que são elementos constitutivos as definições. Só para citar, alguns exemplos, na proposta do Código Penal, no capítulo relativo aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual bem como os relativos ao património em geral, apresentam definições que são elementos constitutivos dos crimes previstos em cada um dos capítulos.

11. A título de direito comparado vale, aqui, referir que em Moçambique a Lei Sobre a Violência Doméstica Praticada Contra a Mulher, define violência física grave, simples, violência psicológica, sexual e patrimonial e a seguir criminaliza estas condutas, fazendo delas verdadeiros tipos legais de crimes autónomos com os todos os seus elementos objectivos e subjectivos.

12. O artigo 25.º(Crimes que não admitem desistência), apresenta um conjunto de factos, que na óptica do legislador são “crimes públicos em matéria de violência doméstica” e razão pela qual “não admitem desistência”. Mais uma vez, o artigo 25.º apresenta defeitos quanto à determinação dos tipos de crimes (nomen juris) que considera “crimes públicos” e os seus elementos objectivos e subjectivos. Para além da função de garantia, a determinação do crime em concreto (nomen juris) é importante para definição do bem jurídico protegido pela norma.

13. O elemento histórico da Lei n.º 25/11, demostra o contrário relativamente ao âmbito e tipificação do crime de violência doméstica. Em 2010, o Ante – Projecto de Lei que depois passou para Proposta de Lei, também na altura apelidada de “lei contra os homens” não foi aprovado pela Assembleia Nacional, devido a sua dureza.

14.Aquela proposta, apesar dos vários defeitos que apresentava tinha o mérito de definir com precisão o seu âmbito e tipificar o crime de violência doméstica. O artigo 2.º (âmbito) estabelecia que a lei se aplicava a todos os factos (…) de violência doméstica que ocorressem: a) no seio da família (…); b) entre cônjuges ou parceiros de união de facto (…) e c) em qualquer relação íntima de afecto na qual o agressor conviva ou tenha convivido (…).

15.Relativamente à tipificação do crime de violência doméstica, o artigo 28.º (violência doméstica) previa que “ quem habitualmente exerça violência física ou psíquica sobre quem seja ou tenha sido seu conjunge ou sobre pessoa que esteja ou tenha estado ligado por forma estável por análoga relação de acfectividade, ou sobre os filhos próprios ou de cônjuge ou convivente, pupilos, ascendentes ou incapazes que com ele convivam ou que encontrem
sujeitos a sua autoridade, tutela ou curatela, acolhimento ou guarda de facto de um ou outro, é punido com pena 6 meses a 3 anos, sem prejuízo das penas que possam corresponder aos delitos ou faltas em que se tenham concretizado os actos de violência.” As definições de violência sexual, patrimonial, psicológica, física eram igualmente tipos legais de crime autónomos.

16. O legislador, ao não tipificar o crime de violência doméstica, levanta serias dúvidas sobre a legalidade e constitucionalidade da Lei n.º 25/11, visto que não é o nome da lei que determina o tipo legal de crime, mas sim os seus elementos objectivos e subjectivos.
Concluindo:

i) A Lei n.º 25/11, de 14 de Julho, não tipifica o crime de violência doméstica, apenas define violência doméstica e classifica-a. Assim, violência doméstica não é crime.

ii) Os tipos de violência doméstica (violência sexual, patrimonial, psicológica, verbal, física), são subsumíveis a tipos legais de crime previstos no Código Penal e demais legislação penal, tais como “violação, estupro, violação de menor de 12 anos, lenocínio, furto, injúria,
difamação, ofensas corporais”;

iii) Dai que, a não tipificação da conduta “violência doméstica” como crime não impede que os factos que ocorram na unidade doméstica e familiar sejam objecto de responsabilização criminal.
Sugerindo:
i) Que seja alterada a Lei n.º 25/11, de 14 de Julho, de forma a clarificar, primeiro, o seu âmbito, segundo, o (s) bem e /ou bens jurídicos protegidos e terceiro tipificar em termos claros, precisos o crime de violência doméstica;
ii) Que seja alterada a Lei n.º 25/11, de 14 de Julho, no sentido de clarificar se o “crime” de violência doméstica é de natureza pública em todas as suas dimensões ou apenas nas situações previstas no artigo 25.º;

Que sejam criados mecanismos mais práticos e eficazes de prevenção, apoio e protecção das vítimas de violência doméstica.