A proibição de tortura física ou moral e as penas ou os tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes

Benja Satula

I. Introdução Criado à imagem e semelhança de Deus, o homem e a sua dignidade, apesar de ténues manifestações na antiguidade clássica, apenas após as atrocidades e os horrores da Segunda Guerra Mundial, passou a constar dos modernos textos constitucionais e por isso mesmo erigido à categoria, não só de princípio constitucional, mas e fundamentalmente como princípio fundante dos Estados.

A positivação da dignidade da pessoa humana, em particular, e dos direitos humanos no geral surge como reação às atrocidades e barbáries praticadas ao longo da Segunda Guerra Mundial e mais rigorosamente, com as Constituições e os grandes textos internacionais posteriores à Segunda Guerra Mundial com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, Convenção Europeia dos Direitos do Homem de 1950, Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de 1966, Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos e Sociais de 1966; Convenção Interamericana dos Direitos do Homem de 1969 e a Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos de 1981.

Esta incorporação da dignidade da pessoa humana nestes instrumentos internacionais, significou a reafirmação do estatuto de intocável, de sagrado, no sentido da herança judaico-cristã e de reforço da necessidade não só do seu conhecimento e elevação, mas também lhe conferindo a qualidade de valor universal, absoluto e supra-positivo e eixo incontornável em toda família humana, por isso mesmo inalienável, e fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Dito de outro modo: «a alteração das circunstâncias históricas limitou-se a tematizar e a tornar consciente algo que estava implícito nos direitos humanos desde o início».

A alteração das circunstâncias, como se afigura supra, reposicionou a conceção da autonomia ética e da irrepetível e singularidade da pessoa humana. O princípio da dignidade da pessoa, extraído da fórmula do seu imperativo categórico de Kant- Ages de tal

Texto publicado no Comentário da Carta Africana dos Direitos do Homem e do Povo, UCEDITORA, 2020
Sócio Fundador da BS-Advogados e docente da Faculdade de Direito da Universidade Católica MIRANDA, Jorge (2019) Pág. 5 e HABERMAS, Jürgen (2012) Pág. 27 e 28 forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa, quanto na pessoa de qualquer outro, sempre também, como um fim, e nunca como um meio.

Da herança do pós-guerra e da revistação do imperativo categórico de Immanuel kant, fica a ideia de que cada pessoa é um ser irrepetível e sujeito de uma inalienável dignidade que exige que ela não possa ser utilizada como meio para justificar a realização de outras pessoas e/ou de outros interesses, mesmo que comunitário. É, desde logo, este o fundamento e substrato deste artigo 5.º da Carta Africana e do seu postulado de interdição absoluta de qualquer forma de tortura (física ou mental), tratamento cruel, desumano e degradante da pessoa humana.

II. Âmbito
O artigo 5.º da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos carrega e encerra a preocupação dos signatários com a dignidade da pessoa humana, reconhecimento da sua personalidade jurídica, bem como a proteção da sua integridade física e mental. Por isso, o seu conteúdo contempla não só uma proibição universal como uma garantia absoluta: a tortura e os tratamentos desumanos e degradantes não encontram justificação na Convenção, quaisquer que sejam as circunstâncias que os provocaram, mesmo na reação a um perigo público ameaçando a vida da nação, como o terrorismo ou o crime organizado.

A proibição de tortura, tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante é absoluta. É aquele que atinge o nível mínimo de severidade, e a avaliação deste mínimo é, pela natureza da situação, relativa, dependendo de todas as circunstâncias do caso, tais como a duração do tratamento, os seus efeitos físicos ou mentais e, em alguns casos, do género, idade ou estado de saúde da vítima.

O artigo 5.º da Carta Africana proíbe, não só, o tratamento cruel, como também desumano e degradante, o que inclui não só ações que causem grave sofrimento físico ou psicológico, mas também que humilhem ou forcem o individuo a agir contra a vontade ou consciência.
A proibição de tortura e tratamento ou castigo cruel, desumano e degradante devem ser interpretados de modo tão amplo quanto possível de forma a englobar a maior gama KANT, Immanuel, (2009), p. 110 BARRETO, Irineu Cabral (2010) (pág. 86). 6 CADHP, Comunicação n.º 225/98 Ogaga Ifowodo, Olisa Agbakoba e outros (representado por Huri – Laws) c. Nigeria possível de abusos físicos e mentais.

O Âmbito e a interpretação desta segunda pate do artigo 5.º da Carta Africana – tortura, tratamento cruel, desumano e degradante – deve ser o mais abrangente possível e de forma mais ampla possível que possibilite a inclusão no âmbito de proteção contra os abusos, quer físicos ou mentais e o sofrimento e a indignidade podem revestir muitas formas, dependendo das circunstâncias particulares de cada caso e isto inclui a estigmatização e adjetivação de pessoas como “lunáticas ou idiotas” e extensível a todo e qualquer ato que se configure recusa de contacto com a família, recusa de informação à família sobre o local onde se encontra detido até as condições das prisões, centros de detenções superlotadas, todas as lesões ou agressões e psíquicas tais como privação de eletricidade, de alimentação, insuficiente e/ou falta de
acesso aos cuidados médicos ou medicamentosos.

III. Conteúdo e caraterização Ao analisar-se o artigo da Carta Africana e mais especificamente a segunda parte deste artigo requer se perceba não só a dimensão da proibição absoluta e da garantia universal que os signatários pretenderam dar ao artigo como antecâmara de proteção e respeito pela dignidade da pessoa humana, tendo para o caso estabelecido três níveis de proteção numa escala mais qualitativa do que quantitativa, interdição ou proibição da (i) tortura – física ou mental, (ii) penas ou tratamento cruéis e (iii) penas ou tratamento desumanos ou degradantes. Mas não há propriamente compartimentos estanques: pode haver tratamentosa que todos estes qualificativos se apliquem, pois a tortura não pode deixar de ser um tratamento cruel, desumano e degradante e todo o tratamento cruel e desumano não pode
Neste sentido CADHP, Comunicação n.º 225/98 Ogaga Ifowodo, Olisa Agbakoba e outros (representado por Huri – Laws) c. Nigeria e CADHP, Comunicação n.º 236/00 Hanan Ahmed Said Hanan Osman, Sahar Ebrahim Khair Ebrahim e colegas (representados por Curtis Francis Doebbler) vs. Sudão.
CADHP, Comunicação n.º 241/01 Pacientes da Unidade Psiquiátrica do Hospital Royal Victoria (representados por H. Purohit e P. Moore ) c. Gambia 9 CADHP, Comunicação n.º 292/04 Esmaila Connateh e outros (representados pelo, Institute for Human Rights and Development In Africa) vs. Angola deixar de ser degradante10. Entretanto é possível encontrar espaços de caraterização singular para cada um dos três seguimentos da segunda metade do artigo 5.º da Carta.

A Tortura
Uma das áreas que mais tem merecido a atenção da Comissão no que concerne ao artigo 5.º é a questão da tortura. Por isso para além da vasta jurisprudência firmada, a Comissão adotou instrumentos e medidas específicas tais o Comité para a Prevenção da Tortura em África e as Directrizes das Ilhas Robben para a Proibição e Prevenção da Tortura.

A Tortura constitui a inflição intencional e sistemática de dor ou sofrimento físico ou psicológico a fim de punir, intimidar ou obter informações. Trata-se de uma “ferramenta” destinada ao tratamento discriminatório de pessoas, grupos de pessoas que por alguma razão, estejam a ser alvo de algum controlo, imputação ou investigação por parte de um Estado ou particulares, não afetos ao Estado. O propósito da tortura é o controlo do individuo ou populações mediante destruição daquilo que lhe é/são mais precioso, a
dignidade.

A tortura pode também ser entendida como qualquer ato pelo qual se inflija intencionalmente sobre uma pessoa dor ou sofrimento, seja físico ou mental, severos com o propósito de obter informação ou extrair uma confissão dessa pessoa ou de um terceiro, o propósito de intimidar ou coagir uma pessoa ou um terceiro ou com propósito discriminatório.

Técnicas, métodos e atos de tortura
BARRETO, Irineu Cabral (2010) (pág. 88).
BALDÉ, Aua (2017), pág. 95.
CADHP, Comunicação n.º 279/03 e 296/05, População negra de Darfur da tribo Fur, Marsalit e Zaghawa representados por Sudan Human Rigths Organisation, Centre On Housing Rights e Evictions –COHRE, Darfur Diaspora Association, Sudanese Women Union in Canada e Massaleit Diaspora Association) c. Sudão ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, (2008) Enquanto um termo abstrato tem sido comum nas questões apresentadas pela Comissão Africana que as vítimas descrevam tanto quanto possível que as técnicas, os métodos e atos
a que foram submetidos, para daí se poder extrair a correta caraterização dos atos a que as vítimas foram submetidas e se na realidade correspondem aos pressupostos da interdição consagrada no artigo 5.º ca carta Africa dos Direitos do Homem e dos Povos. Não sendo
possível imaginar e antever, segundo a realidade concreta, que meios, técnicas e atos podem ser praticados, a Comissão tem defendido uma interpretação tão ampla quanto possível, para que nenhum ato fique de fora. Deste modo se tem incluído no âmbito da tortura:
insultos; privação de sono por vários dias; agressões que, embora não deixando marcas físicas podem afetar a saúde mental, detenção em locais sem higiene básica; ofensas à integridade física ou mental – inclui a administração corporal de substâncias, a hipnose,
técnicas de provocação de stress, encapuçamento, sujeição a barulho, privação de sono, privação de alimentação; exploração de um estado de exaustão já existente14;
Submissão das vítimas em celas em campos militares; privação e/perturbação do sono; interrogatórios em horários de dormir; execuções demoradas de modo a provocar morte lenta e cruel ao ponto de as vítimas; disponibilizar apenas uma insuficiente refeição por dia;
submeter os detidos a trabalhos forçados; manutenção das vítimas acorrentadas, sozinhas ou aos pares em celas, com ou sem janela; submissão a espancamentos seletivos e períodos pelos guardas prisionais; detidos a dormir no chão cru, sem cobertor, mesmo em períodos
frios, em celas invadidas por piolhos, percevejos e baratas, sem higiene e sem cuidados médicos, sem acesso à visitas de familiares, advogados ou de médicos, amarrar as vítimas no momento da detenção; técnicas como “jaguar/Helicóptero” – amarrar os pulsos da
vítima aos pés e ser suspensa por uma barra de cabeça para baixo, com ou sem fogueira abaixo e chicotadas na planta dos pés; queimadas com beatas de cigarro ou metal aquecido, o estupro; o enterro de pessoas, na posição vertical, até ao pescoço, com a cabeça de fora;
choques elétricos nos órgãos genitais; queimaduras deliberadas em partes distintas do corpo.

Atar as mãos atrás dos corpos, despir a vítima, molhar o corpo com água fria e espancar-lhes com barras de ferro. Queimaduras com brasas de carvão, lançar pó aos olhos ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, (2008); CADHP, Comunicação n.º 64/92, 68/92 e 78/92 Aleke banda
(representado por Ar Krishna Achuthan), Orton e Vera Chirwa (representados pela Amnesty International) c. Malawi das vítimas, submersão da cabeça em águas pútridas até sufocarem, aprisionar em celas subterrâneas, acorrentados e com temperaturas abaixo do normal.
Atos como espancamentos para forçar a retirada de confissões, a negação de oportunidade de dormirem, quer no período de investigação, quer nos períodos de julgamento, o confinamento em celas solitárias, a ausência de alimentação, o permanente acorrentar em
celas muitas vezes superlotadas e sem condições de higiene mínimas e sem acesso aos cuidados médicos, queimaduras sistemáticas em partes distintas do corpo, enterrados na área e deixar-lhes morrer lentamente, os choques elétricos nos órgãos genitais, a submersão
em águas pútridas, pó e picantes nos olhos, o infringir técnicas como jaguar revestem-se inequivocamente um tratamento cruel, desumano e degradante.

Penas e tratamento cruéis e penas e tratamento desumanos e degradantes A distinção entre tortura e pena ou tratamento cruel degradante reside menos na sua natureza, repousando essencialmente na intensidade dos sofrimentos infligidos. Assim tratamento degradante pode ser entendido como a totalidade que causem humilhação, desconsideração e banalização da dignidade humana, da reputação, orgulho e consideração pessoais, são atos que não se traduzindo numa violência física, configuração uma desconsideração pela pessoa humana e sua dignidade, desde que atinjam um mínimo da gravidade. E tratamento cruel e desumano será aquele que provoca voluntariamente graves
sofrimentos físicos ou mentais em proporções que não atinjam os níveis de tortura e numa escala intermedia entre a tortura e o tratamento degradante. 

O Artigo 5.º não somente proíbe a tortura, mas também o tratamento cruel, desumano e degradante. Isto não inclui apenas ações que causem sério sofrimento físico ou psicológico, mas aqueles actos que humilhem a pessoa ou a compele a agir contra a sua vontade e
CADHP, Comunicações nºs 54/91; 61/91; 96/93; 98/93; 164/97; 196/97; 210/98, Sarr Diop e outros (representados por Malawi African Association, Amnesty International, Union Interafricaine des Droits de l’Homme and Association Mauritanienne des Droits l’Homme) vs. Mauritania.
BARRETO, Irineu Cabral (2010) pág. 88. consciência17. Tem entendido a Comissão Africana que, também, constitui tratamento
cruel, desumano e degradante a detenção em estabelecimentos militares com severas restrições à liberdade das pessoas; a perseguição e importunação de membros de uma determinada religião; a falta de fornecimento de serviços básicos como água potável e
eletricidade, a carência de medicamentos.

Este tratamento inclui condições de detenção com base na origem étnica e a manutenção de crianças, mulheres e idosos em condições
deploráveis, com destruição de aldeias e seguidas ou forçadas a presenciarem massacres e as deportações constantes, a simples e reiteradas ameaças de deportação e as consequências que acarretam, o forçar alguém a viver na “terá de ninguém” enquanto atos de que exposição à sofrimento pessoal e a indignidade.

O âmbito de proibição abrange, inclusive, atos legais de inflição de penas ou tratamentos cruéis, humilhantes e degradantes mesmo
que exercidos em privado e com acompanhamento ou presença de um corpo médico.

IV. Obrigações e implicações para os Estados
1. Obrigação dos Estados Tal como resulta do Direito Internacional Geral e do Sistema Internacional dos Direitos Humanos os Estados ao ratificarem ou aderirem aos instrumentos internacionais firmam voluntariamente o compromisso, não apenas, respeitar as disposições dos instrumentos, o que implica a adoção de medidas no direito doméstico que traduzam a materialização das
CADHP, Comunicação n.º 334/06, Mohamed Gayez Sabbah, Mohamed Abdalla Abu-Gareer e Ossama Mohamed Al-Nakhlawy (representados por Egyptian Initiative for Personal Rights; Interights c. Egypt) e CADHP, Comunicação n.º 292/04 Esmaila Connateh e outros (representados pelo, Institute for Human Rights and Development In Africa) c. Angola CADHP, Comunicação n.º 25/89 – 47/90 – 56/91 – 100/93 – Free Legal Assistance Group Lawyer’s Commite For Human Rights, Uninion Interafricaine des Droits de L’homme, Les Témoins de Jehovan c. RDC CADHP, Comunicação n.º 27/89; 46/91; 99/93, Bonaventure Mbonuabucya, Vincent Sinarairaye,
Shadrack Nkunzwenimana e outros (representados por Organisation Mondiale Contre la Torture, Association Internacionale des Juristes Démocrates, Commission Internacionale des Juristes, Union Interafricaine des Droits de l’Homme) c. Rwanda
CADHP, Comunicação n.º 97/93, John K. Modise (representado pela INTERIGHTS) c. Botswana CADHP, Comunicação n.º 236/00 Hanan Ahmed Said Hanan Osman, Sahar Ebrahim Khair Ebrahim e colegas (representados por Curtis Francis Doebbler) vs. Sudão, disposições destes instrumentos de tal sorte que a nenhum Estado será legitimo invocar nenhuma circunstâncias como fundamento ou justificação para o recurso ou uso de tortura ou outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

A comissão Africana tem ido mais distante ao dispor que dentro das suas obrigações os Estados devem primar por observar as disposições da Carta Africana e por isso, é-lhes interdito a consagração de castigo físico judicial, mesmo após os esgotamentos de todos os recursos cabíveis, pelo simples fato de tal medida, mesmo se legal ou institucionalizada, isto é, ordenada por uma autoridade judicial do Estado, ela implicaria sempre uma violência de um ser humano a outro ser humano. Não assiste quaisquer direitos a que um Estado, um Governo ou indivíduos exerçam violência física sobre um individuo como punição de uma infração. Um tal direito seria equivalente, segundo a Carta Africana, a sancionar a tortura física apoiada por um Estado, o que seria contrário a própria natureza dos Direitos Humanos.

É jurisprudência recorrente da Comissão que nenhuma situação política, muito menos gravidade dos atos, eventualmente praticados pelas vítimas, é justificativa para se proceder/legitimar que um Estado use métodos proibidos pelo artigo 5.º da Carta Africana, pois esta disposição não contempla restrições ou limitações em nenhuma circunstância.

Isto implica uma leitura do direito doméstico de acordo e em conformidade com a Carta Africana, de contrário, se permitisse que os Estados partes pudessem interpretar as disposições da Carta Africana de modo a puder limitar ou mesmo nega-la nas respetivas leis internas tornaria vã a utilidade e a vitalidade da Carta Africana.

Qualquer restrição aos direitos consagrados na Carta Africana por parte dos Estados membros, independentemente da situação política, serviriam apenas para desviar a confiança pública em relação à primazia do Direito e aumentam a instabilidade no seio dos Estado. Num
Estado onde a instabilidade e a falta de confiança pública dos instrumentos, quer internacionais ou nacionais, frustraria o objetivo legítimo de proteção e reforço da unidade CADHP, Comunicação n.º 224/98, Niran Malaolu e outros (representados por Media Rights Agenda) vs. Nigeria; CADHP, Comunicação n.º 241/01 Purohit e Moore vs. Gambia e CADHP, Comunicação n.º 292/04 Esmaila Connateh e outros (representados pelo, Institute for Human Rights and Development In Africa) c. Angola. CADHP, Comunicação n.º 236/00 Hanan Ahmed Said Hanan Osman, Sahar Ebrahim Khair Ebrahim e colegas (representados por Curtis Francis Doebbler) vs. Sudão. CADHP, Comunicação n.º 275/03, Zemenfes Haile, Selamyinghes Beyene, Yesof Mohamed All e outros (representados pelo Article 19) c. Eritrea nacional em circunstâncias políticas difíceis não pode ser alcançado com atos de censura à democracia partidária, princípios democráticos e do respeito pelos direitos do homem.

Tal como incumbe aos Estados a adoção de medidas domésticas que se traduzam na concretização das disposições da Carta Africana e dos demais instrumentos internacionais de que sejam parte, é também seu dever proteger a vida e a dignidade humanas de forma mais abrangente. A inércia ou inação do Estado, mesmo nas situações em que os atos não foram praticados por agentes públicos, podem gerar para si responsabilidades por não proteção da vida e da dignidade humana dos cidadãos ai residentes, no quadro da sua jurisdição. A Comissão Africana tem firmado jurisprudência e recomendações no sentido de que quanto à violação da vida e da dignidade humanas por atos praticados por um individuo (privado ou sem autoridade pública) e por isso, não imputável diretamente ao Estado, pode gerar responsabilidade do Estado, não por causa do ato propriamente dito, mas devido à falta de diligências por parte deste Estado para prevenir e/ou impedir que essas violações as disposições da Carta Africana tenham ocorrido ou por não ter dado o
devido apoio as vitimas.

Pode-se inferir a partir desta jurisprudência que a obrigação de os Estados, cientes da imprevisibilidade de ocorrência de tais atos, adotarem nos ordenamentos jurídicos domésticos leis de apoio e indemnização das vítimas de crimes violentos, vexatória ou tratamento degradantes.

Implicações
A afirmação de que, mais do que uma disposição fechada, o artigo 5.º da Carta Africana exige uma interpretação mais ampla quanto possível requer da parte das ordens jurídicas domésticas têm de ser consequentes não só com a Carta, como também com a jurisprudência da Comissão Africana e do Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos CADHP, Comunicação n.º 279/03 e 296/05, População negra de Darfur da tribo Fur, Marsalit e Zaghawa (representados por Sudan Human Rigths Organisation, Centre On Housing Rights e Evictions –COHRE, Darfur Diaspora Association, Sudanese Women Union in Canada e Massaleit Diaspora Association) c. Sudão; CADHP, Comunicação n.º 275/03, Zemenfes Haile, Selamyinghes Beyene, Yesof Mohamed All e outros (representados pelo Article 19) c. Eritrea
CADHP, Comunicação n.º 279/03 e 296/05, População negra de Darfur da tribo Fur, Marsalit e Zaghawa representados por Sudan Human Rigths Organisation, Centre On Housing Rights e Evictions –COHRE, Darfur Diaspora Association, Sudanese Women Union in Canada e Massaleit Diaspora Association) c. Sudão Povos. Não obstante a sensibilidade cultural com deve ser interpretada a Carta, tendo conta
as diferentes tradições jurídicas de África e a diversidade de práticas culturais do povo, inclusive, no interior dos Estados, é possível encontrar zonas domésticas de consenso e de discussão sobre um eventual conflito entre as práticas culturais e a defesa da dignidade
humana. O diálogo há-de ser, por exemplo, não apenas sobre atos considerados como de atrozes e barbárie, mas sobre práticas comumente aceites nos distintos povos que constituem o universo do mosaico africano, concretamente práticas como: ritos de iniciação feminina e masculina, a incisão ou mutilação genital de entre outras com fundamento cultural ou religioso devem colocar em diálogo permanente a Carta e a jurisprudência que dela resulta e as práticas culturais que incidem sobre a pessoa humana, sua dignidade e integridade física e que podem configurar atos de tratamento cruel, desumano e degradante.

Os vários elementos apresentados também permitem afirmar que o artigo 5.º da Carta implica da parte dos Estados membros a adoção instrumentos e medidas de proteção à grupos particularmente vulneráveis tais como: crianças e etnias minoritárias e de proteção
jurídico de bens jurídicos que compreendem o núcleo essencial da dignidade humana.

3. A particular questão do processo penal

Sem pretender reduzir a dimensão e a transversalidade do artigo 5.º da Carta Africana para os Estados é, no entanto, no processo penal e nas investigações criminais onde de forma mais acutilante se reclama a observância deste artigo. Deste modo é obrigação dos Estados
assegurar que o sistema penal e prisional e as suas infraestruturas – centros de detenção e estabelecimentos prisionais – devam reunir condições mínimas exigidas para que não se transformem em nó górdio da violação da proibição de tortura, tratamento cruel,
desumano e degradante.

À margem das infraestruturas e mais sensível é o geral entendimento de que aí onde existir a proteção da dignidade humana tem de existir normas constitucionais e/ou processuais penais que proíbam e sancionem quaisquer provas que tenham sido obtidas mediante
tortura, tratamento cruel, desumano e degradante.

A abordagem sobre os métodos proibidos de prova, pressupõe ainda que de forma sucinta neste estudo, falar-se da prova (obtenção e valoração) no processo penal, que são matérias reguladas nos sistemas processuais penais e visam assegurar não apenas que no processo de
recolha se cometam excessos, como também assegurar um equilíbrio entre as partes no processo. Como as fontes de obtenção das provas, a sua valoração axiológica e regulamentação da atividade probatória é distinta e dispersa, assim as suas violações não estão submetidas as mesmas consequências e não produzem os mesmos efeitos no processo.

O instituto das provas proibidas ou cabalmente dos métodos proibidos de prova – proibição de produção e proibição de valoração – tem como ratio prevenir e proscrever num Estado Democrático de Direito atentados drásticos à dignidade humana, assegurando deste modo que não se abalem os fundamentos sobre que assentam a moderna consciência democrática que confere ao sistema-jurídico penal, em geral, e ao
processual penal em particular, uma identidade própria.

“Têm de considerar-se proibidos e inadmissíveis em processo penal todos os meios de interrogatório e de obter declarações
que importem ofensa à dignidade da pessoa humana, à integridade pessoal (física ou moral) do arguido, em especial os que importem qualquer perturbação da sua liberdade de vontade e de decisão tais como: maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose e utilização de meios cruéis e enganosos. Perturbação por qualquer meio, da capacidade de memória e de avaliação do arguido, a utilização contra ele de força fora dos casos e limites expressamente permitidos pela lei, e a própria ameaça com uma medida legalmente inadmissível ou promessa de qualquer vantagem não prevista na lei”. E sancionar com nulidade as provas, ou suas valorações, mediante o recurso a estes métodos.

Daqui depreendemos que sendo absoluta, e não comportando restrições de nenhuma natureza, a proibição de tortura, tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante sobre qualquer cidadão, independentemente da gravidade dos atos praticados ou da situação política em que se vive, deve ser observado e respeitado por todos os Estados membros. Mais do que o mero respeito e observância, os Estados devem adotar medidas politicas, administrativas e investigativas de proteção da dignidade humana e de prevenção de submissão a estas práticas e, medidas jurídico-processuais e penal para assegurar o mínimo de dignidade aos cidadãos que possam ser alvos de investigação, inquérito e ações

ALVARADO, Yesid Reyes, (2019) pág. 194.
ROXIN, Claus, SCHÜNEMANN, Bernd, (2017); ANDRADE, Manuel da Costa, (2013) pág. 209
DIAS, Jorge de Figueiredo (1974) pág. 454
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, (2008), pág. 323. penais, a proteção de indivíduos vulneráveis na sociedade e consagrar medidas de proibição
– obtenção ou valoração – de provas com recurso a métodos que degradem e humilhem a pessoa humana. É, quanto a nós, este o espírito, o impacto e as implicações da interpretação e aplicação da Carta Africana nos ordenamentos jurídicos domésticos.
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CADHP, Comunicação n.º 48/90; 50/91; 89/93 Abd Al-Quadir, Mohammed Yahya Salman e Babiker e outros (representados pela Amnesty International, Comité Loosli Bachelard, Lawyers’ Commitee for Human Rights,
Association of Members of the Episcopal Conference of East Africa) c. Sudão
CADHP, Comunicações nºs 54/91; 61/91; 96/93; 98/93; 164/97; 196/97; 210/98, Sarr Diop e outros (representados por Malawi African Association, Amnesty International, Union Interafricaine des Droits de l’Homme and Association Mauritanienne des Droits l’Homme) vs. Mauritania.
CADHP, Comunicação n.º 64/92, 68/92 e 78/92 Aleke banda (representado por 8Ar Krishna Achuthan), Orton e Vera Chirwa (representados pela Amnesty International) c. Malawi
CADHP, Comunicação n.º 74/92 Bisso Mamadu, Joseph Bteudi e outros (representados pela Commission Nationale des Droits de l’Homme et des Libertés) c. Chade
CADHP, Comunicação n.º 97/93, John K. Modise (representado pela INTERIGHTS) c. Botswana
CADHP, Comunicação n.º 137/94; 139/94; 154/96; 161/97 Ken Saro – Wiwa Jr. ( representado por International PEN Constitution Rights, Civil LIberties Organisation e Interrights) vs. Nigéria
CADHP, Comunicação n.º 140/94; 141/94, 145/95, Chief Enahoro, Prince Adeniji-Adele, Chief Kokori e outros (Constitucional Rights Project, Civil Liberties Organisation e Media Agenda) c. Nigéria
CADHP, Comunicação n.º 143/95; 150/96, Abdul Oroh, Chima Ubani, Tunji Abajom, Frank Kokori e outros (representados por Constitucional Rights Project, Civil Liberties Organisation) c. Nigeria
CADHP, Comunicação n.º 151/96, Beko Ransome-Kuti, Mallah Shehu Sanni, Bem Charles Obi e outros (representados por Civil Liberties Organisation) c. Nigéria
CADHP, Comunicação n.º 204/97, Halidou Ouedraogo, Compaoré Christophe e outros (representados por Mouvement Burkinabe des Droits de l’Homme et des Peuples) c. Burquina Fasso
CADHP, Comunicação n.º 205/97, Ayodele Ameen e Kazeem Aminu c. Nigeria
CADHP, Comunicação n.º 212/98, William Steven Banda e John Lyson Chinula (representados pela Amnisty Internacional) c. Zambia
CADHP, Comunicação n.º 215/98, Charles Baridon Wiwa (representado por Rights International) c. Nigeria
CADHP , Comunicação n.º 222/99, Abdullah Abdulrhman Nugdalla, Ibrahim Abu Abd Elmahmoud e Gabriel Ding (representados por Law Office of Ghazi Suleiman) c. Sudão
CADHP, Comunicação n.º 224/98, Niran Malaolu e outros (representados por Media Rights Agenda) vs. Nigeria;
CADHP, Comunicação n.º 225/98 Ogaga Ifowodo, Olisa Agbakoba e outros (representado por Huri – Laws) c. Nigeria
CADHP, Comunicação n.º 227/99, República Democrática do Congo c. Rwanda e Uganda
CADHP, Comunicação n.º 232/99, John D. Ouko c. Kénia
CADHP, Comunicação n.º 236/00 Hanan Ahmed Said Hanan Osman, Sahar Ebrahim Khair Ebrahim e colegas (representados por Curtis Francis Doebbler) vs. Sudão.
CADHP, Comunicação n.º 241/01 Pacientes da Unidade Psiquiátrica do Hospital Royal Victoria (representados por H. Purohit e P. Moore ) c. Gambia
CADHP, Comunicação n.º 245/02, Grace Kwinjeh, Geoff Nyarota, Tim Neil e outros (representados por Zimbabwe Human Rights NGO – Forum) c. Zimbabwé
CADHP, Comunicação n.º 249/02, Refugiados da Serra Leoa na Guiné (representados por Institute for Human Rights and Development in Africa) c. Guiné
CADHP, Comunicação n.º 64/92, 68/92 e 78/92 Aleke banda (representado por 8Ar Krishna Achuthan), Orton e Vera Chirwa (representados pela Amnesty International) c. Malawi
CADHP, Comunicação n.º 266/03, Kevin Mgwanga Gunme e outros c. Camarões
CADHP, Comunicação n.º 275/03, Zemenfes Haile, Selamyinghes Beyene, Yesof Mohamed All e outros (representados pelo Article 19) c. Eritrea
CADHP, Comunicação n.º 279/03 e 296/05, População negra de Darfur da tribo Fur, Marsalit e Zaghawa representados por Sudan Human Rigths Organisation, Centre On Housing Rights e Evictions –COHRE, Darfur Diaspora
Association, Sudanese Women Union in Canada e Massaleit Diaspora Association) c. Sudão
CADHP, Comunicação n.º 292/04 Esmaila Connateh e outros (representados pelo Institute for Human Rights and Development In Africa) vs. Angola
CADHP, Comunicação n.º 334/06, Mohamed Gayez Sabbah, Mohamed Abdalla Abu-Gareer e Ossama Mohamed AlNakhlawy (representados por Egyptian Initiative for Personal Rights; Interights c. Egypt)