1.No dia 5 de Maio de 2020 fui convidado pelo meu colega, na Faculdade de Direito da Universidade Católica de Angola, Dr. Moses Caiaia, a quem penhoradamente agradeço, a participar no espaço “CONVERSAS DE DIREITO ON LINE”, onde falamos sobre a Lei das Acções Encobertas para Fins de Prevenção e Investigação Criminal.
2. A referida Lei é de extrema importância, pois vem regular e estabelecer o regime jurídico de práticas “acções encobertas” que já têm ocorrido ao nível da investigação e instrução processual. A título de exemplo, o n.º 1 do artigo 35.º da Lei n.º 3/99 de 06 de Agosto (Sobre o Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas e Percursores), com epígrafe “Conduta não punível”, dispõe: “ Não é punível a conduta do agente de investigação criminal que, para fins de investigação e sem revelação da sua qualidade e identidade, aceitar directamente ou por intermédio de um terceiro a entrega de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.”
3. Ora, mas apesar da bondade e mérito do legislador, dos vários problemas que Lei, apresenta, questiono a constitucionalidade do artigo 17.º inserido no Capítulo V sob epígrafe “Protecção do Agente Encoberto e Ocultação da Identidade”, onde se lê:
1. No caso do Juiz da causa determinar, por indispensabilidade da prova, a participação do agente encoberto na fase do julgamento, devem ser observadas as normas do processo penal relativas aos declarantes.
2. Para o cumprimento do disposto no número anterior, o Tribunal deve tomar as medidas necessárias para que, na audiência de julgamento, o agente encoberto seja visto de forma reservada, apenas pelo Juiz e pelo Ministério Público, como, entre outras, recorrer a vídeo-conferência, teleconferência ou a recolha antecipada do depoimento.
4. O problema do artigo 17.º (Participação do Agente Encoberto na fase de julgamento) coloca-se no n.º 2, em que na audiência de julgamento permite-se que “o agente encoberto seja visto de forma reservada, apenas pelo Juiz e pelo Ministério Público”.
5. Em primeiro lugar é importante clarificar que a “Acção Encoberta é um meio excepcional de investigação e de obtenção de prova, susceptível de violar direitos, liberdades e princípios tais, como a não autoincriminação, integridade moral e privacidade dos cidadãos.
6. Em segundo lugar, a ratio da audição do “Agente Encoberto” da audiência de julgamento reside na consideração da “indispensabilidade da prova”, isto é, em outras palavras no “apuramento da verdade material e objectiva.”
7.Assim, se é verdade que é importante ocultar a identidade do “Agente Encoberto” por força da natureza dos acções que prática, já não é justo e equitativo que em audiência de julgamento seja “apenas visto” ainda que de “forma reservada” somente pelo “Juiz e pelo Ministério Público”, coartando, deste modo, o direito que assiste a Defesa de também o ver. Pois, o Ministério Público, embora se ensine na doutrina e nas escolas de Direito que é “parte em sentido formal”, na prática forense e na maior parte das vezes, desempenha o papel de “parte em sentido material”, ou seja, parte interessada em sentido negativo.
8. O processo penal vigente em Angola, nos termos da CRA, é de matriz acusatória, e é incompatível com a violação dos princípios da igualdade (23.º), direito a julgamento justo e conforme (72.º); “… princípios do acusatório e contraditório …” (n.º 2 do artigo 174.º), princípio da verdade material e objectiva. O n.º 2 do artigo 17.º viola estes princípios.
9. Do mesmo modo, o n.º 2 do artigo 17.º viola, instrumentos jurídicos internacionais ratificados por Angola, nomeadamente: o artigo o § 1, e o n.º 5 do § 3 do artigo 17.ºdo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e os artigos 1.º, 7.º e 10.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH).
10. O normal e próprio de um processo penal democrático, e olhando para Lei, o “ Agente Encoberto” em julgamento deve ser “visto” em igualdade de circunstâncias pelo Juiz, Ministério Público e Defesa, observando-se, caso seja necessário, o que estabelece, o artigo 407.º do CPP, in fine, realizando uma “audiência secreta” sem publicidade ou usando procedimento mutatis mutandi idêntico ao previsto na Lei n.º 1/20 de 22 de Janeiro (sobre a Protecção das Vítimas, Testemunhas e Arguidos Colaboradores em Processo Penal).
11. Mais grave será se a expressão “visto de forma reservada, apenas pelo Juiz e pelo Ministério Público do n.º 2 do 17.º ter o sentido que o “Agente Encoberto” em nome da privacidade e ocultação da sua identidade deve apenas ser interrogado pelo Juiz e pelo Ministério Público de forma reservada e não pela Defesa.
12. Não menos importante e que será objecto de uma análise futura é o artigo 2.º (âmbito) e artigo 4.º (Conceito) em que se confunde a vocação e papel dos “Órgãos de Polícia Criminal) stritu sensu com as dos demais Órgãos de Segurança e Ordem Interna, de Defesa Nacional e de Inteligência e de Segurança do Estado” em matéria de prevenção e combate a criminalidade.
13. O artigo 8.º (Início das acções Encobertas) também não é claro quanto à relação e função do Titular do Órgão de Polícia Criminal (cujo conceito dessa Entidade, para efeitos presente Lei, deveria constar no artigo 3.º “definições”). Disse que não é claro, pois nas “Acções Encobertas” a serem realizadas na fase de instrução preparatória, o Ministério Público, apesar de ter competência nos termos na al.f) do artigo 186.º da CRA de “ dirigir a fase preparatória dos processos penais …” caso pretenda a intervenção do “Agente Encoberto” e, consequente, realização de “Acções Encobertas” pode/deve solicitar segundo, o n.º 3 do artigo 8.º conjugado com o n.º 1 do mesmo artigo, “oficiosamente, ao Titular do Órgão de Polícia Criminal( …) que a ordena por vias próprias”! Ora, a Lei não determina se o Titular do Órgão de Polícia Criminal tem ou não obrigação de deferir tal pedido. Caso contrário, isto é, se o Titular do Órgão de Polícia Criminal não for obrigado a despachar favoravelmente a solicitação do Ministério Público, verifica-se, uma inversão de funções, subalterniza-se o Ministério Público perdendo, deste modo, o sentido de ser responsável pela direcção da instrução preparatória.
14. Concluindo e sugerindo:
Que a Ordem dos Advogados de Angola, no cumprimento da sua missão de defender os direitos, liberdades, garantias fundamentais dos cidadãos e dos arguidos em particular, requeira nos termos da al.f), do n.º 2 do artigo 230.º da CRA, a fiscalização abstracta sucessiva junto do Tribunal Constitucional do n.º 2 do artigo 17.º da Lei n.º 10/20 de 16 de Abril ( Sobre as Acções Encobertas para fins de Prevenção e Investigação Criminal), com fundamento na violação dos princípios da igualdade, ampla defesa, contraditório, julgamento justo e equitativo, acusatório previstos na CRA e instrumentos internacionais (PIDCP, DUDH) ratificados por Angola.