1.Um dos grandes problemas que enferma o processo legislativo em Angola é o “vírus” cujo nome é “legislar em causa própria.” Infelizmente o “vírus” tem tido a cumplicidade e cobertura do legislador formal (Assembleia Nacional), que em muitas situações tendo o poder de decidir em última instância pela aprovação ou não da lei, acaba por aprovar leis até mesmo inconstitucionais.
2.Se assim não fosse, não teríamos leis com atropelos gritantes e escandalosos à Constituição da República de Angola (CRA). A título de exemplo, são as Leis: n.º 22/12 de 14 de Agosto (Lei Orgânica da Procuradoria Geral da República e do Ministério Público); 25/15 de 18 de Setembro (Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal); n.º 15/18 de 26 de Dezembro (Lei Sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens); n.º 10/20 de 16 de Abril
(Lei das Acções Encobertas para Fins de Prevenção e Investigação Criminal); n.º .º 11/20 de 23 de Abril ( Lei Identificação ou Localização Celular e Vigilância Electrónica) e tantas outras leis.
3. Por detrás do “vírus” estão essencialmente interesses de grupos, corporativistas e o ego de algumas entidades que erradamente acreditam que manipulando leis, com finalidade de chamar a si mais poderes ou estatuto servem melhor o interesse público. Na verdade, neste tipo de exercício, o interesse público é confundido com interesses de grupos e pessoais.
4.Uma das recentes situações de legislar em causa própria e que chama atenção é o n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20 de 24 de Março (Lei de Bases sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional).”
5. Com epígrafe “imunidades” o artigo 68.º estabelece que: “1. Os Oficiais Comissários da PNA gozam de imunidades nos termos da presente Lei e
demais legislação aplicável.
2. Os Oficiais Comissários da PNA não podem ser presos sem culpa formada, excepto em flagrante delito por crime doloso punível com pena de prisão superior a três anos, devendo, neste caso, o detido ser entregue imediatamente ao Procurador Geral da República para interrogatório e solicitação de autorização ao Presidente da República e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas, para a manutenção da prisão.
3. Os Oficiais Comissários da PNA são julgados em primeira instância, por feitos criminais, pelo Tribunal Supremo, ou no caso de prática de crime militar, pelo Supremo Tribunal Militar.”
6.Sobre a mesma matéria, o artigo 49.º da Lei 25/15 de 18 de Setembro (Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal) dispõe que:
“1. Os Oficiais Generais das Forças Armadas Angolanas e Comissários da Polícia Nacional
não podem ser presos sem culpa formada, excepto em flagrante delito, por crime doloso
punível com pena de prisão superior a dois anos.
2. Tratando-se de crime do foro comum deve o detido ser entregue imediatamente ao
Procurador Geral da República e em caso de crime essencialmente militar ao Procurador
Geral Militar, para interrogatório, validação e comunicação da prisão ao Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Nacionais.”
7. Assim, o n.º 2 do artigo 68.º da Lei n.º 6/20 de 24 de Março (Lei de Bases sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional) é uma clara manifestação do “vírus” de legislar em causa própria, senão vejamos: Os Comissários da Polícia Nacional à luz da Lei 25/15 de 18 de Setembro, podiam ser detidos ou presos “em flagrante delito, por crime doloso punível com pena de prisão superior a dois anos”. Estranhamente, não se sabendo qual
foi o critério ou a “ratio – teleológica” utilizada, os Oficiais Comissários da Polícia Nacional têm as suas imunidades mais reforçadas, visto que a nova lei fixa agora uma pena de prisão superior a 3 anos!
8. A Lei 25/15 de 18 de Setembro, na determinação da pena de prisão para deter ou prender em situações de flagrante delito por crime doloso, um “Deputado à Assembleia Nacional”; “Ministros de Estado, Ministros, Secretários de Estado, e entidades equiparadas”; “Magistrados Judiciais e do Ministério Público” e “Oficiais Generais das Forças Armadas Angolanas” faz recurso ao critério da equiparação horizontal, daí o limite da pena de prisão
(pena superior a 2 anos), ser igual para todas as entidades aí referidas.
9. Deste modo, os Oficiais Comissários da Polícia Nacional têm, igualmente, mais imunidades que órgãos de soberania (Deputados à Assembleia Nacional e Magistrados Judiciais)!
10. Mais grave ainda, também, sem fundamentação e precedente legislativo numa Angola de Democrática é o facto de a Lei n.º 6/20 de 24 de Março ( Lei de Bases sobre a Organização e Funcionamento da Polícia Nacional), condicionar a “manutenção da prisão” de um Oficial Comissário da Polícia Nacional que tenha cometido um crime doloso em flagrante delito punível com pena superior a 3 anos, à autorização do Presidente da República e Comandante-
em-Chefe das Forças Armadas Angolanas. Explicando, segundo o n.º 2 da referida lei, depois de preso um Oficial Comissário da Polícia Nacional de Angola, é “entregue imediatamente ao Procurador Geral da República para interrogatório”, mas o Procurador Geral da República, promotor, Titular da acção penal e defensor da legalidade, para mante-lo preso deve “solicitar autorização ao Presidente da República e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas.”Pasme-se!
11. Dito de outro modo, os Oficiais Comissários da Polícia Nacional de Angola, passam a ser as únicas entidades “castrenses” com imunidades, os primeiros e únicos cidadãos em Angola, que não devem ser mantidos em prisão, pelo Procurador Geral da República sem “autorização
do Presidente da República e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas.” Já os Oficiais Generais das Forças Armadas Angolanas, seus “pares” para efeitos de imunidades, nas mesmas circunstâncias, podem ser presos pelo Procurador Geral da República por crimes dolosos punível com pena de prisão superior a 2 anos e depois “comunica-se” apenas ao Presidente da República e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas.
12. Está forma “viral” de legislar em causa própria, no caso em concreto, desvaloriza a função e retira poderes ao Procurador Geral da República enquanto Mais Alto Magistrado do Ministério Público, promotor, titular da acção da penal, fiscal e defensor da legalidade democrática (186.º da CRA), e, é uma ameaça séria ao propalado combate a impunidade.
13. Concluindo, o n.º 2 do artigo 68.º, é inconstitucional, pois viola os princípios da separaração de poderes/funções e o da igualdade de tratamento ( artigo 23.º e n.º 3 do artigo 105.º todos da CRA), colocando o Presidente da República e Comandante-em-Chefe das Forças Armadas Angolanas a interferir directamente na actividade judiciária do Ministério Público, dando assim, razão aos que alegam existir ingerência do poder político na justiça.
14. Termino sugerindo que a Comissão de Reforma da Justiça e do Direito recentemente criada e a Assembleia Nacional enquanto legislador formal “combatam e eliminem” o “vírus” de legislar em causa própria, no processo legislativo em Angola, por não defender interesses dos cidadãos, mas sim corporativistas e satisfação de egos de algumas entidades que julgam que é tendo mais poderes, imunidades/garantias ou títulos, que sem tem mais autoridade e melhor desempenho de funções.