1.A Associação dos Juízes de Angola – AJA, organizou e muito bem no passado dia 21 de Junho de 2018, uma mesa redonda subordinada ao tema: “Condução sob Influência de Álcool”. Parabéns pela iniciativa! Na referida actividade dissemos que a condução sob influência de álcool em Angola não é crime, por não ser conduta típica. Para sustentar a nossa “tese” apresentamos vários argumentos, com destaque para a questão relativa à estrutura da
norma penal incriminadora;

2.Nos processos crimes relativos à condução sob influência de álcool, que os Tribunais têm julgado, o problema que se levanta é o de saber qual o fundamento legal, doutrinário e/ou jurisprudencial previsto para o efeito;

3.Dos vários diplomais legais existentes sobre a matéria, destacam-se 3 (três): O Decreto Lei n.º 5/08 de 29 de Setembro, que aprova o Código de Estrada (CE); o Decreto n.º 231/79 de 16 de Julho, que aprova a Disciplina o Trânsito Automóvel (DTA) e o Decreto Presidencial n.º 186/12 de 17 de Agosto, que aprova o Regulamento de Fiscalização da Condução Sob Influência do Álcool ou de Substâncias Legalmente Consideradas como Entorpecentes (RFCIASLCE). Na prática, para as condutas criminosas, os Tribunais têm fundamentado as suas decisões fazendo recurso ao Código de Estrada e ao Decreto n.º 231/79 de 16 de Julho;

4. O n.º 2 do artigo 175.º (Infracções às regras especiais de segurança na condução) do CE estabelece que “considera-se crime a condução em estado de embriaguês, o facto descrito nos números 2, 3 e 4 do artigo 80.º sempre que a taxa de álcool no sangue seja igual ou superior a
1,2 g/l e será punida nos termos da legislação própria”;

5. Por sua vez, o n.º 2 do artigo 80.º do C.C. (Condução sob influência de álcool ou de substâncias legalmente consideradas como entorpecentes) dispõe que “Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue (TAS) superior a 0,6 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico” e o n.º 4 dispõe que
“Considera-se sob influência de substâncias legalmente consideradas como entorpecentes o condutor que após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial”;

6. No rigor técnico jurídico-penal o artigo 80.º é uma norma penal integrante ou de segundo grau na vertente declarativa / explicativa e o artigo 175.º é uma norma penal de aplicação, pois no geral disciplinam a aplicação e os limites das normas incriminadoras, (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português I, 2001: 229 ss);

7. Deste modo, fica claro que o Código de Estrada não tipifica o crime de condução em estado de embriaguês ou drogado visto que, quer o artigo 80.º quer o artigo 175.º não são normas penais incriminadoras, mas sim meras definições;

8.Mas, a última parte do n.º 2 do artigo 175.º remete a punição da condução em estado de embriaguês com uma “taxa de álcool no sangue(…) igual ou superior a 1,2 g/l, para uma legislação própria”;

9. No ordenamento jurídico angolano a legislação própria que o n.º 2 do artigo 175.º faz referência é, sem sombra de dúvidas, o Decreto n.º 231/79, de 16 de Julho. Este diploma legal dispõe no artigo 17.º (Condução no estado de embriaguês ou drogado) que a “condução no estado de embriaguês ou de drogado será punida com a pena de prisão até um ano, não remível nem susceptível de suspensão”;

10.Esta norma igualmente não tipifica o crime de “condução no estado de embriaguês ou drogado”, porque não apresenta de modo claro e inequívoco os elementos objectivos do tipo “conjunto daqueles elementos que determinam o quadro externo de aparecimento do facto crime” (Orlando Rodrigues, Apontamentos de Direito Penal, 2014:144);

11. Como se sabe, o tipo legal de crime também desempenha uma função de garantia (exigência de natureza política estabelecida na Constituição, que se manifesta pelo princípio da legalidade “nullum crimen sine lege”, n.º 2 do artigo 65.º), pois contem a descrição do comportamento incriminado a que o facto deve necessariamente ajustar-se; (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português II, 2005:26);

12. O artigo 17.º, em relação ao elemento objectivo do tipo não prevê, a titulo de exemplo, onde se faz a condução: “via pública ou aberta ao publico”; o que é objecto de condução: “veículo rodoviário? Com ou sem motor” e em relação ao elemento subjectivo, prevê o “dolo”, mas somente o “dolo”!, pois é questionável o que reza o artigo 4.º do mesmo diploma legal;

13. Se é verdade, que o preceito secundário (sanção) esta previsto no artigo 17.º, o mesmo já não se pode falar em relação ao preceito primário (que define o crime), onde encontramos apenas três elementos normativos, “a condução”, “embriaguês” e “drogado”;

14. No artigo 17.º, a falta de determinação, no preceito primário, isto é, dos elementos constitutivos do crime de “condução no estado de embriaguês ou drogado” viola, como é óbvio, o princípio da tipicidade e da legalidade (no plano da determinabilidade);

15.Saber a espécie de “veículo”, de “via” é uma garantia do tipo e, consequentemente, do princípio da legalidade da intervenção penal. Daí que qualquer exercício interpretação de tais elementos com recurso ao Código de Estrada ou outras leis, viola um princípio fundamental que é o da proibição da interpretação extensiva das normas penais incriminadoras, pois assim, estar-se-ia a fundamentar a responsabilidade criminal;

16. Salvo opinião contrária, o artigo 17.º também não é uma norma penal em branco, mas sim uma norma que contém alguns elementos normativos (“condução”, “embriaguês” e “drogado”), cuja determinação conceitual realiza-se mediante o recurso a normas extrapenais, ou seja, a valoração, jurídica, técnica, etc. Cfr. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral,

2.ª Edição, 2008: 161;

17. Para ser norma penal em branco, incompleta, ou de reenvio (norma que contem a sanção penal, mas que remete o facto típico total ou parcialmente para descrição feita por uma outra norma extrapenal), exige-se que a remissão – conexão entre a norma penal e a extrapenal seja clara e inequívoca e que esta seja precisa na descrição da conduta. O artigo 17.º não descreve a conduta. Cfr. igualmente, Taipa de Carvalho, Direito Penal, 2.ª Edição, 2008: 158. Logo, o artigo 17.º não é uma norma penal em branco homogénea nem heterogénea;

19. Relativamente à última parte do artigo 17.º “não remível nem susceptível de suspensão.” É inconstitucional por força do Acórdão n.º 328/2014, de 24 de Junho do Tribunal Constitucional, que declara de forma correctíssima a inconstitucionalidade dos artigos 23.º e 24.º do Decreto 231/79 de 16 de Julho.

20. Concluindo:

i) A “condução no estado embriaguês ou drogado” não é crime no ordenamento jurídico angolano;
ii) O Decreto n.º 231/79 de 16 de julho, em relação as normas penais incriminadoras, não apresenta lacunas em homenagem aos princípios da legalidade, tipicidade e fragmentariedade. Dito de outro modo, em Direito Penal, no que diz respeito às normas
penais incriminadoras, não há lacunas;
iii) O Decreto n.º 231/79 de 16 de Julho, viola o princípio da novidade e o da aplicação do regime mais favorável;
iv) O julgamento pelos Tribunais da “condução no estado de embriaguês ou drogado”, como crime, tendo como fundamento os artigos 80.º, 175.º do Código de Estrada e 17.º do Decreto n.º 231/79 de 16 de Julho é ilegal e inconstitucional, pois viola o n.º 2 do artigo 65.º da CRA,
nullum crimen sine lege e por tudo quanto foi dito.

21. Sugerindo:
i) Que seja aprovado com a urgência necessária a proposta do Código Penal, que prevê em termos precisos o crime de (condução de veículo rodoviário em estado de embriaguez), cujos trabalhos de elaboração e discussão, no geral, já levam quase 20 anos, como se pretendessem ter um Código Penal perfeito;
ii) Que a “condução no estado de embriaguês ou drogado” em homenagem aos princípios da legalidade da intervenção penal e da tipicidade seja tratada, de forma administrativa através da aplicação de multas de natureza não pena