1. Foi publicado em Diário da República, no dia 11 de Novembro de 2020, o novo Código de Processo Penal (C.P.P.). Ao ler o Código chama, logo, atenção o artigo 4.º da Lei que aprova o referido Código.

2. Diz-se, e muito bem, que o Direito Processual Penal é “o direito dos inocentes”, “o direito constitucional aplicado”, diria a par do Juiz, é, igualmente, a última esperança do arguido face ao ius puniendi, isto é, o poder punitivo do Estado.

3. O novo C.P.P., tem muito mérito reconhecido, pois substitui o “Código 29” que tem mais de 90 anos, mas no que a efectiva protecção dos Direitos, Liberdades, Garantias Fundamentais dos Cidadãos, diz respeito, começa mal.

4. Começa mal, porque o legislador veio, mais uma vez, legitimar o excessivo e arbitrário poder do Ministério Público que se traduz no “saque”, no esvaziamento e na usurpação de competências exclusivas do Juiz na Instrução Preparatória. Este, estado da arte, processo de usurpação de competências do Juiz tem história e leva mais de 40 anos.

5. Tudo começou com a Lei n.º 4/79 de 16 de Maio (Lei da Institucionalização da Procuradoria Geral da República) e, sequencialmente, a Lei .º 4-D/80, de 25 de Junho (primeira Lei da Prisão Preventiva em Instrução Preparatória); Lei n.º 5/90 de 7 de Abril ( Lei da Procuradoria Geral da República); Lei n.º 18 – A/92, de 17 de Julho (Lei da Prisão Preventiva em Instrução Preparatória); Lei n.º 22/12, de 14 de Agosto ( Lei da Procuradoria Geral da República e do Ministério Público); Lei 25/15 de 18 de Setembro ( Lei das Medidas Cautelares em Processo Penal) e por último a Lei n.º 39/2020 de 11 de Novembro, que aprova o novo Código de Processo Penal, que é dela parte integrante.

6. O “Código 29” que vigora em Angola independente desde 1975, apesar de matriz inquisitória, a competência de efectuar o primeiro interrogatório de arguido detido e aplicação de medidas de coação pessoal era exclusiva do Juiz. Tudo só se altera a partir de 1979 com a criação da Procuradoria Geral da República e em todas as Leis referidas no ponto 5 do presente texto.

7. Ora, estranhamente, quando todos esperavam que fosse o fim do “ CALVÁRIO”, com a reposição da legalidade e concretização dos princípios que regem a moderna dogmática processual penal, própria de um Estado de Direito e Democrático, a Assembleia Nacional ( Legislador), num claro acto de “traição das expectativas” dos cidadãos reforçou, mais outra vez, os poderes do Ministério Público e legitimou a usurpação das competências do Juiz, dispondo no n.º 1 do artigo 4.º (transição) da Lei que aprova o novo Código de Processo Penal que “ O Ministério Público cessa o exercício das competências atribuídas aos juízes de garantia pelo Código aprovado pela presente Lei, logo que estes entrem em funções.” Em tese nada de novo, é assim desde 1979 e, sobretudo, desde 2010.

8. Em matéria de Direitos, Liberdades, Garantias Fundamentais dos Cidadãos, a verdadeira usurpação de competência com a “cumplicidade” da Assembleia Nacional (Legislador) consta no Título VI (Medidas Processuais de Natureza Cautelar). A estilo “Conferência de Berlim” as competências exclusivas do Juiz de aplicar medidas de coação pessoal e de garantia patrimonial com excepção do Termo de Identidade e Residência; Interdição de Saída do País; Prisão Domiciliária; Prisão Preventiva, da Caução Económica e do Arresto Preventivo, as outras medidas de coação pessoal, como (A obrigação de Apresentação Periódica às Autoridades; A Proibição ou Obrigação de Permanência em Determinados Locais e Proibição de Contactos com Determinadas Pessoas, a Caução foram divididas entre Juiz e Ministério Público.

9. Explicando, enquanto se mantiver a transição, isto é, não forem criados os Juízes de Garantia, tal como prevê o n. º1 do artigo 4.º da Lei que aprova o Código de Processo Penal, todas medidas de coação pessoal, a sua aplicação será exercida pelo Ministério Público. Quando um dia forem criados os Juízes de Garantia, a Interdição de Saída do País; Prisão Domiciliária; Prisão Preventiva, passarão a ser exercidos de forma exclusiva pelo Juiz de Garantia, mantendo as demais medidas partilhadas entre Juiz e Ministério Público.

10. O que não encontra fundamento nem na Constituição de 2010, nem na Teoria Geral dos Direitos Fundamentais é a ideia de que (A obrigação de Apresentação Periódica às Autoridades; A Proibição ou Obrigação de Permanência em Determinados Locais e Proibição de Contactos com Determinadas Pessoas e a Caução), não põem causa Direitos e Liberdade fundamentais. O direito à liberdade de circulação, de estar, de comunicação e o de propriedade são igualmente afectados (restringidos e limitados) pela aplicação daquelas medidas e esta é uma competência que só deve ser de um Juiz e não do Ministério Público (artigo 57.º e al. f) do 186.º da CRA).

11. O que não deve ser ignorado por força da Constituição Processual Penal de 2010, é o facto de a CRA, ter optado um sistema processual penal de matriz acusatória (n.º 2 do artigo 174.º e al. f) do artigo 186.º), “quem acusa não julga, quem julga não acusa,” conferindo ao Ministério Público a direcção da instrução preparatória do processo penal, a titularidade da acção penal e aos tribunais (Juiz) o poder de “dirimir conflitos de interesses público ou privado, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, bem como os princípios do acusatório e do contraditório e reprimir as violações da legalidade democrática.”

12. Assim, num Estado de Direito e Democrático, que assenta na Dignidade da Pessoa Humana (artigos 1.º e 2.º da CRA) e com um sistema processual penal de pendor acusatório, a intervenção do Juiz ocorre em todas as fases do processo penal sempre que se trata de acautelar e assegurar Direitos e Liberdades e Garantias Fundamentais dos Cidadãos. Explicando de outro modo, quando um cidadão é detido e lhe é aplicada uma medida de coação pessoal com excepção do (termo de identidade e residência) “cria-se”, no geral, um conflito entre o cidadão e o Estado representado pelo Ministério Público. Assim, o Ministério Público cuja vocação é perseguir o crime, dirigir a instrução do processo, promover o processo e execercer acção penal não deve, obviamente, ser a mesma a decidir sobre a medida de coação pessoal a aplicar ao arguido. Deve ser uma entidade diferente e esta entidade é somente o Juiz.

13. Aliás, aplicar uma medida de coação pessoal e de garantia patrimonial significa “realizar” o direito e esta é uma prerrogativa exclusiva do Juiz em homenagem ao princípio da exclusividade do exercício do poder judicial pelo Juiz. No processo penal, o Ministério Público representa o Estado, logo, não deve exercer funções judiciais sob pena de violação do princípio nemo judex in causa sua (ninguém pode ser juiz em causa própria), pois sempre que um cidadão é detido sob suspeita de ter praticado um “crime” há no geral dois direitos e ou interesses em jogo, os do Estado e do Cidadão e perante este conflito não deve o Ministério Público exercer o papel de Juiz sob pena de ser como se diz em linguagem desportiva “ o arbitro, treinador, capitão da equipa … em fim, o próprio dono da bola.”

Concluindo e Sugerindo:

O n.º 1 artigo 4.º da Lei 39/20 de 11 de Novembro que aprova o Código de Processo Penal e todos os demais artigos do Titulo VI (Medidas Processuais de Natureza Cautelar), que atribuem competências exclusivas do Juiz na fase de Instrução Preparatória, ao Ministério Público, são inconstitucionais, pois violam o princípio do acusatório (n.º 2 do artigo 174.º, al. f) do artigo 186.º ambos da CRA e o n.º 3 do artigo 9.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos) e, igualmente, pelo facto de o artigo 4.º não apresentar um tempo de transição definido e determinado, seguindo a mesma linha do Acórdão 467/17 do Tribunal Constitucional de 15 de Novembro, cuja transição nos termos daquele Acórdão já leva 3 anos.

Nota negativa a Assembleia Nacional (Legislador), por ter, mais uma vez, “traído as expectativas dos cidadãos” em relação à defesa e garantia dos seus Direitos e Liberdades fundamentais e acto contínuo ter atribuído competências exclusivas do Juiz na Instrução Preparatória ao Ministério Público.

Juízes e Procuradores não são “jingongos”, ou melhor, irmãos gémeos. Juiz é Juiz e Procurador é Procurador. São, de facto, entidades distintas. Por isso, entendo que cabe aos Juízes, sobretudo, através do Conselho Superior da Magistratura Judicial em primeira linha defender o seu “munus” contra os reiterados ataques e não ficar, salvo o devido respeito e consideração, em “cima do muro” assistir a constante e permanente usurpação e partilha de suas competências exclusivas.

A criação dos Juízes de Garantia é uma questão estruturante do Estado de Direito e Democrático. Por isso entendo que ultrapassa o Conselho Superior da Magistratura Judicial (n.º 2 do artigo 4 da Lei n.º 39/20 de 11 de Novembro) que pouco fez e/ou faz para sua concretização efectiva, pois apesar de em Agosto de 2019, terem tomado posse os referidos Juízes, nunca mais se ouvir deles.

Ao Poder Político vale lembrar que, em condições normais, nenhum investidor sério, investe num País onde o Ministério Público exerce competências exclusivas do Juiz. Está prática não garante certeza e segurança jurídica nos negócios, sempre que que se verificam conflitos.

Que a Ordem dos Advogados de Angola, requeira a apreciação da constitucionalidade junto do Tribunal Constitucional dos artigos do Título VI (Medidas Processuais de Natureza Cautelar), e demais normas do novo C.P.P. que violam Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais dos Cidadãos.

Termino, por enquanto, sugerindo ao Legislador (Assembleia Nacional), salvo melhor entendimento, que faça correcção pontual as Leis 38/20 e 39/20, ambas de 11 de Novembro, por terem revogado Leis que já não vigoram no ordenamento jurídico angolano:

1. Na Lei 38/20 que aprova o novo Código Penal, o Legislador, na al. i) do artigo 2.º revoga os artigos 73.º, 74.º, 75.º e 76.º da Lei n.º 7/06 de 15 de Maio (Lei de Imprensa). Esta Lei na sua totalidade foi revogada pela Lei n.º 1/17, de 23 de Janeiro (Lei de Imprensa). Na al. k) do mesmo artigo são revogados os artigos 61.º a 65.º da Lei n.º 34/11, de 12 de Dezembro (Lei do Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo). Esta Lei sua na totalidade, também foi revogada pela Lei n.º 5/20 de 27 de Janeiro (Lei de Prevenção e Combate ao Branqueamento de Capitais, do Financiamento do Terrorismo e da Proliferação de Armas de Destruição em Massa).

2. Nas Leis n.º 38/20 e 39/20 há uma contradição quanto a revogação do Decreto n.º 231/79, de 26 de Julho (que Disciplina o Trânsito Automóvel). A Lei n.º 38/20 (Código Penal) revoga apenas os artigos 4.º, 7.º, 12.º a 15.º, 17.º, 19.º, 20.º, 22.º, 23.º, 24.º e 33.º, vide al. b) do n.º 2, do artigo 6.º, ao passo que na Lei n.º 39/20 que aprova o Código de Processo Penal, o referido Decreto é revogado na totalidade, vide al. l) no n.º 2, do artigo 2.º.